As normas constantes da Lei n. 8.137/90 que versam sobre os crimes contra a ordem tributária fazem parte do Direito Penal Econômico, destacando-se, dentre elas, a atinente ao crime de sonegação fiscal, o qual, consoante o artigo 1º da referida lei, consiste no seguinte:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
O dispositivo acima é complementado pelo artigo 11, da mesma Lei, o qual dispõe que “quem, de qualquer modo, concorre para os crimes definidos nessa lei, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. ”
Ao primeiro ponto, nota-se que da análise conjugada desses dois dispositivos, é possível a responsabilização criminal do contador que, no exercício de sua função, empreende técnicas de elisão fiscal que culminam na enganação ou indução do fisco em erro.
Não à toa, na prática, invariavelmente, quando algum cidadão acusado de sonegação fiscal é instado judicialmente, atribui o fato a um erro ou responsabilidade do seu contador, reclamando, porém, que se examine os limites da responsabilidade do contador quando o crime de sonegação fiscal, em tese, está perfectibilizado.
A propósito dessa responsabilidade, à evidência, essa é subjetiva, uma vez que para a sua delimitação é necessário que se prove a efetiva participação do acusado no cometimento do ilícito, não se admitindo, portanto, a responsabilidade objetiva, o que significa dizer, na discussão aqui proposta, que nem sempre a atuação do contador que gera lesão ao fisco evidencia, necessariamente, o cometimento de um crime tributário.
Dito isso, assenta-se, outrossim, que os contadores têm responsabilidade profissional pela escrituração contábil e as demonstrações financeiras só podem ser levantadas ou divulgadas com a assinatura do responsável técnico e, em virtude dessa responsabilidade, deve agir em conformidade com a lei, tanto é que o Conselho de Federal de Contabilidade, ao editar o Código de Ética dos Contabilistas, com base no artigo 2º, inciso I, da Resolução nº 290/70, dispôs que todo o contador deve exercer a sua profissão com zelo, diligência e honestidade, observada a sua independência profissional.
Ao editar essa orientação, sobretudo em relação à independência funcional, as normas que lhes conferem poderes de caráter técnico partem do pressuposto que de que os contadores não participam das decisões empresariais que competem aos órgãos de administração instruídos em cada caso, de maneira que, por consequência, em tese, os profissionais de contabilidade não geram as pessoas jurídicas e, por isso, não detêm poderes ou instrumentos legais para evitar que o contribuinte deixe de adimplir suas obrigações fiscais.
Todavia, há situações que comprovado o dolo, possível a responsabilização do contador pelo cometimento de crimes contra a ordem tributária, de forma que valem alguns exemplos para clarear a discussão.
1º caso exemplo: o contador que trabalha em uma empresa e presta, deliberadamente, informações errôneas ao fisco sem o consentimento dos sócios da empresa, ocasionando obtenção de vantagem fiscal indevida para a sociedade empresária, tem responsabilidade penal no crime de sonegação fiscal, haja vista o dolo evidente na sua conduta, isto é, a vontade livre e consciente na operacionalização da consecução da vantagem fiscal.
Aliás, é o que se infere da jurisprudência abaixo colacionada:
Lei nº 8.137/90 – Sonegação de tributo estadual –Simples condição de proprietário da empresa que seria beneficiada com a sonegação é insuficiente para o reconhecimento da responsabilidade penal se o próprio contador da empresa assume ser o responsável pela transmissão de informações para autoridades fazendárias – Ausência de prova de que o réu tivesse agido com intenção de lesar o fisco -Absolvição bem decretada – Sentença mantida -Recurso improvido.
(TJ-SP – APL: 163888620048260050 SP 0016388-86.2004.8.26.0050, Relator: Alexandre Almeida, Data de Julgamento: 25/05/2011, 11ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 21/06/2011). (Destaque nosso).
2º caso exemplo: o contador que presta serviços à uma empresa e, ao receber informações aparentemente fidedignas prestadas pelo seu cliente, as repassa ao fisco, causando lesões fiscais ao Estado e, por consequência, obtendo vantagem fiscal indevida para a sociedade empresária, comete o crime contra a ordem tributária? Nesse caso se o contador não possui nenhum meio de identificar a fraude praticada pelo seu cliente e, de igual modo, não se locupleta financeiramente dessa fraude, se conclui que há ausência de responsabilidade criminal do contador, logo não cometendo o crime.
No mesmo sentido, em passado recente, apontou a jurisprudência:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. […] Mérito. Pleito da defesa limitado objetivando imputar a responsabilidade criminal ao contador da empresa, bem como o reconhecimento de causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa por dificuldade financeira da empresa. Irresignação não acolhida. Inadmissível a responsabilização do contador da empresa se somente a apelante, na condição de proprietária e gerente, obteve proveito econômico com a sonegação fiscal. Dificuldade financeira eventualmente enfrentada pela pessoa jurídica que não tem o condão de excluir a culpabilidade da sentenciada. Condenação que diz respeito à utilização de meios fraudulentos para reduzir a carga tributária devida; não à impossibilidade dos respectivos recolhimentos. Dosimetria da pena que não comporta alteração. Penas bem dosadas. Proporcionalidade do incremento de 1/2 (metade) pela continuidade delitiva, considerando o período de tempo em que se desenvolveu a infração. Sentença mantida. PRELIMINAR REJEITADA. RECURSO DESPROVIDO.
(TJ-SP 00077537120148260566 SP 0007753-71.2014.8.26.0566, Relator: Camargo Aranha Filho, Data de Julgamento: 24/08/2017, 15ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 25/08/2017) (Destaques nossos).
3º caso exemplo: Em tom prático, ainda, a jurisprudência não admite a responsabilidade criminal na modalidade culposa, de forma que, a propósito de uma sobreposição e profusão de normas tributárias, é possível, muitas vezes, cogitar de erro inevitável na atuação do contador, passível, pois, caso constatado que o contador agiu de boa fé e de forma escusável, a isenção de responsabilidade criminal, conforme se infere da ementa abaixo colacionada:
PENAL E PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, INCISO V, DA LEI Nº 8.137/90. VENDAS DE RECARGA DE CELULAR. NÃO EMISSÃO DE NOTAS FISCAIS E SUPRESSÃO DOS RESPECTIVOS TRIBUTOS INCIDENTES. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. 1. O CRIME PREVISTO NO ART. 1º, INCISO V, DA LEI Nº 8.137/90, CONSUBSTANCIADO NA NÃO EMISSÃO DE NOTA FISCAL RELATIVA À VENDA DE MERCADORIAS, NECESSITA, PARA SUA CARACTERIZAÇÃO, DA COMPROVAÇÃO DA VONTADE DO AGENTE DE BURLAR O FISCO. 2. NÃO DEMONSTRADO NOS AUTOS O DOLO ESPECÍFICO DE SUPRIMIR TRIBUTOS, MAS APENAS QUE O RÉU DEIXOU DE EMITIR AS NOTAS FISCAIS RELATIVAS A VENDAS DE RECARGA PARA CELULAR, PORQUE INFORMADO POR SEU CONTADOR QUE, NESSE CASO, O ICMS É RETIDO NA FONTE DE FORMA ANTECIPADA PELAS OPERADORAS DE TELEFONIA, CRIME NÃO HÁ, SOMENTE MERA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA DECORRENTE DE SUA ATUAÇÃO CULPOSA. 3. NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
(TJ-DF – APR: 234080220108070001 DF 0023408-02.2010.807.0001, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 08/03/2012, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: 13/03/2012, DJ-e Pág. 205).
Em suma, constata-se que quando comprovado que o contabilista utiliza seu conhecimento técnico para obter vantagem fiscal indevida para a pessoa jurídica, de forma livre e consciente, isto é, dolosamente, é possível a sua responsabilização criminal pelo crime de sonegação fiscal, lembrando-se, porém, que o dolo sempre deve ser comprovado de forma a não existir dúvidas sobre a sua existência, ou, do contrário, a absolvição sempre se imporá.